Ostras e Pérolas
- katiabonfanti
- 9 de mai.
- 4 min de leitura
Atualizado: 13 de mai.
Sobre levezas profundas, espumantes e a felicidade das ostras

Katia Bonfanti, psicóloga sistêmica e escritora
A poesia é a expressão mais pura do olhar — penso nisso sempre que vejo uma ostra abrindo-se, devagar, como se revelasse um segredo. Rubem Alves mostrou a beleza nascida de um grão de areia; ou melhor, a beleza forjada na dor, ao dizer: “ostra feliz não faz pérola.” O poeta levou-me a deslisar pelos labirintos dos moluscos, a questionar se a beleza esférica a balançar no fio dos meus brincos só poderia germinar no terrível desassossego causado por um grão de areia a esfolar a maciez daquela criaturinha — a ostra.
Mas então, ao olhar mais de perto, uma ideia se forma em minha mente: e se for a felicidade — e não a dor — a origem da beleza? E se descobríssemos que as cascas das ostras são, na verdade, suas verdadeiras pérolas — e que nelas habita a essência de uma vida-ostra?
Talvez a beleza forjada na dor seja, afinal, uma grande cegueira. Será mesmo que toda dor é necessária para criar algo de valor? Não deveríamos, quem sabe, repensar isso?
Essas perguntas me acompanharam numa manhã no Mercado, quando resolvi parar na ostraria para observar — e quiçá saborear — as ostras. A Les Portugaises, no Mercado de Cascais, é uma ostraria logo na entrada do pavilhão; impossível entrar pelo estacionamento e não ver as mesas externas, onde pessoas saboreiam ostras com um bom espumante.
Foi ali que conheci Francisco — e, com ele, uma nova forma de perceber o lado perolado das ostras.
Francisco costuma estar por lá, entre colegas que, poetas das conchas como ele, divertem-se enquanto trabalham. De olhos vivos, não perde a conexão com os clientes enquanto abre, delicadamente, as ostras.
Deu-me uma aula. Com toque sutil, mostrou como romper o músculo com a ferramenta, girar a ostra na casca e preservar o caldo mareado entre o molusco e a concha. Deixa-a brilhar ao centro, como uma bela em sua pele de cetim.
Muitas vezes passo por lá apenas para observar — e me surpreender: encontrar dentro daquela carapaça calcária uma criaturazinha que se oferece ao paladar. E torcer para que, a cada rompimento, não surja um grão de tristeza — mas, no instante exato, Francisco, com sua sabedoria imediata e uma leveza que também é profunda, oferece sempre uma resposta bem-humorada.
Na última visita, vi uma família de estrangeiros a degustar ostras na esplanada. Havia uma aura de satisfação que só o prazer verdadeiro é capaz de revelar.
Arrisquei mais uma pergunta a Francisco: que impacto sensorial uma ostra leva para dentro do corpo?
Como será aquele primeiro contato com as ostras recém-abertas, recém-descoladas de sua vida-casca? (Enquanto pensava que viver também seja isso: romper, com delicadeza, nossas próprias cascas — e descobrir que, por dentro, pulsa algo cru, disforme ainda, no entanto profundamente verdadeiro).
— É como tomar o mar... é mar! — disse ele com a suavidade de quem costuma ter mar nas mãos.
Foi tudo tão mais simples nas palavras de Francisco. Mar. Apenas mar... a imensidão do mar a nos tomar a partir de uma ostra.
— E as pérolas, Francisco?
É a pergunta que sempre faço. Quase um jogo, como se quisesse saber se as ostras, ao se descolarem de sua vida-casca, foram felizes ou carregaram um grão de areia pela vida afora. Francisco me garante que, entre as milhares que já abriu, jamais encontrou uma pérola.
— Só vendemos ostras felizes! — responde, com a convicção de quem conhece o mundo das ostras como ninguém.
Por que será que nunca encontramos pérolas por aqui? Talvez porque não sejam ostras incomodadas — ocupam-se do viver. Ouvi dizer que, quando por acaso se encontra algo dentro da concha, é assimétrico e sem "valor". Rimos, um riso de veludo, da ideia de comer ostras felizes — sem pérolas valiosas, sem dramas, apenas quietude.
No interior das cascas das ostras de Francisco, habita o eco do canto das baleias, que elas colecionaram em silêncio.
Francisco contou-me, sorrindo, que o mais curioso não era a ausência de pérolas, mas o fato de que, não importa o tempo, as pessoas sempre consomem ostras com espumante. Pode estar frio, chuvoso, escaldante... ostras sempre combinam com bolhas.
— Ostras descem bem com espumante!
Ri com ele, imaginando a descida da ostra pela garganta. A que se deve essa combinação?
O espumante, com suas borbulhas efervescentes, carrega a leveza do instante, o convite à celebração, ao breve esquecimento do mundo.
Talvez seja isso: o espumante — alegria aérea — encontra nas ostras equilíbrio: leveza que nos eleva, rusticidade que nos ancora. A busca por harmonia no contraste, onde a beleza do momento está não na perfeição da união, mas na ousadia de consumir.
Não há mesmo aquelas pérolas por aqui.
Mas há cantigas de baleia, memória líquida preservada de um mundo oceânico, a mão precisa a pôr as ostras a brilharem em suas conchas, a delícia posta à face ao consumi-las.
Talvez essas experiências — de sabor, encontro e mar — sejam, no fundo, a verdadeira pérola de uma ostra.
E, se mesmo um dia uma ostra desejar fazer uma esfera perolizada, que seja um gesto de amor à simetria — não por defesa, mas por pura arte de polir sua concha. Porque, no fim, não é sobre encontrar pérolas — mas sobre o prazer de consumir o imperfeito.
Crônica poética escrita após uma visita à ostraria Les Portugaises, no Mercado de Cascais. Reflete sobre o valor da leveza, a beleza que nasce do cotidiano e o encanto das ostras felizes — sem pérolas, mas cheias de mar.

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