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A Grandeza das Coisas Banais

Atualizado: 15 de mai.


Como as pequenas coisas constroem o que somos


Por Katia Bonfanti, psicóloga sistêmica e escritora




De que, de fato, é feito um escritor?


Foi ao final da manhã, no Mercado da Vila de Cascais.


O ar estava espesso de aromas — pão fresco, frutas, flores. Conversas cruzavam o pátio como linhas de bordado. O Mercado não era apenas um cenário. Era o próprio corpo do dia, abrindo pequenas fendas de tempo e bem-estar.


Uma pausa com sabor de café e pastel de abóbora com queijo da Serra — sabores que fazem a gente estar e viajar.


Estávamos à mesa do Palavras e Azeitonas quando vi Neumar Silva, escritor brasileiro, com uma xícara de café na mão. Tinha aquele olhar de quem busca um lugar — ou reconhece afinidades silenciosas.


Por um instante, seus olhos se demoraram nas rendas de crochê sobre a mesa, como quem lê uma história antiga, ponto a ponto. Antes que seu olhar se perdesse, acenei.

Ele disse “sim” quando disse “não”. Murmurou algo como “a mesa está arranjada” — e, antes mesmo do fim da frase, já estava à mesa.


Sentou-se junto a mim e a Ana, que saboreávamos mais um dos nosso cafés de aniversário, descompromissadamente, a celebrar o simples. É assim quando se está em festa: os encontros se tornam inevitáveis.


Neumar é desses que caminham guiados por memórias sensoriais. Contou-me que, em suas caminhadas diárias, há uma flor específica cujo perfume o atravessa — e, por instantes, ele volta a ser menino. Costuma levar um pequeno ramo para casa e deixa que o aroma preencha o lar. Não é saudade. É presença.


Uma memória inteira que se acende com um simples cheiro. Essa flor, real e recorrente, lhe serve de bússola — a chave do seu lume de escritor.


Falamos disso, e de livros, e de escrever. Então que perguntei:

— O que você escreve?


Ele sorriu, com a pausa de quem não tem pressa:


— Entre tantas coisas, banalidades.

Banalidades às quais sou fiel...


Falou de suas viagens e da prática de escrever notas.

 

— O diário de memórias — continuou — foi meu guia neste último livro: Entre livros e viagens.


Enquanto falava, mencionou Carolina Maria de Jesus e o impacto de Quarto de Despejo.


A voz brevemente embargada. A lágrima contida. Havia ali o reconhecimento: Carolina escrevia com a fome e a lucidez de quem observa tudo — e ele, com a delicadeza de quem escuta o mundo. Ambos, à sua maneira, revelam o que está escondido nas margens da vida.


E é dessas mesmas margens — feitas de silêncio, resistência e afeto — que nascem os verdadeiros transbordamentos criativos.


Foi ali que compreendi: talvez sejam justamente essas coisas — as que chamamos de banais — que sustentam tudo o que somos. São as delicadezas do dia comum que nos oferecem pertencimento.


Há um heroísmo manso nas insignificâncias.


Manoel de Barros dizia que é preciso “desimportar-se” para alcançar o que é fundo. Que há grandeza nas miudezas, nos gestos quase invisíveis. Talvez escrever — e viver — seja isso: dar valor ao que parece inútil, mas toca a alma. Oferecer um alimento ao andarilho, escutar o que tem a dizer...


Uma mesa posta com rendas. Um café sem urgência. O perfume que, no meio do caminho, devolve a infância.


Essas coisas não constroem o mundo — mas o sustentam por dentro.

Penso agora: um escritor é feito disso. De afetos bem guardados. De sentimentos que sobrevivem ao tempo. De cenas comuns, vividas com inteireza.


E Neumar, ali à mesa, era isso: "um apanhador de desperdícios" — presença inteira.

Palavra limpa. Emoção que não se exibe — apenas escorre, natural.


Quando se levantou, levou consigo a flor que o trouxera — invisível para nós, mas nítida para ele.


E talvez tu também caminhes com uma flor dessas —que não se vê, mas leva de volta ao que importa.

Mesmo sem o saber. Mesmo sem escrever.

Ainda assim, autor: do gesto, do silêncio, da presença.

Porque há luz — sim — nas coisas banais.


Nota: Esta escrita foi inspirada no escritor Neumar Silva, cuja escrita sensível valoriza as pequenas coisas que nos constroem pelo caminho. Seu livro Entre livros e viagens será lançado no dia 24 de maio de 2025, às 15h, na Biblioteca Casa da Horta, Quinta de Santa Clara – Cascais.

Apareça por lá!



 

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