A Grandeza das Coisas Banais
- katiabonfanti
- 14 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: 15 de mai.
Como as pequenas coisas constroem o que somos
Por Katia Bonfanti, psicóloga sistêmica e escritora

De que, de fato, é feito um escritor?
Foi ao final da manhã, no Mercado da Vila de Cascais.
O ar estava espesso de aromas — pão fresco, frutas, flores. Conversas cruzavam o pátio como linhas de bordado. O Mercado não era apenas um cenário. Era o próprio corpo do dia, abrindo pequenas fendas de tempo e bem-estar.
Uma pausa com sabor de café e pastel de abóbora com queijo da Serra — sabores que fazem a gente estar e viajar.
Estávamos à mesa do Palavras e Azeitonas quando vi Neumar Silva, escritor brasileiro, com uma xícara de café na mão. Tinha aquele olhar de quem busca um lugar — ou reconhece afinidades silenciosas.
Por um instante, seus olhos se demoraram nas rendas de crochê sobre a mesa, como quem lê uma história antiga, ponto a ponto. Antes que seu olhar se perdesse, acenei.
Ele disse “sim” quando disse “não”. Murmurou algo como “a mesa está arranjada” — e, antes mesmo do fim da frase, já estava à mesa.
Sentou-se junto a mim e a Ana, que saboreávamos mais um dos nosso cafés de aniversário, descompromissadamente, a celebrar o simples. É assim quando se está em festa: os encontros se tornam inevitáveis.
Neumar é desses que caminham guiados por memórias sensoriais. Contou-me que, em suas caminhadas diárias, há uma flor específica cujo perfume o atravessa — e, por instantes, ele volta a ser menino. Costuma levar um pequeno ramo para casa e deixa que o aroma preencha o lar. Não é saudade. É presença.
Uma memória inteira que se acende com um simples cheiro. Essa flor, real e recorrente, lhe serve de bússola — a chave do seu lume de escritor.
Falamos disso, e de livros, e de escrever. Então que perguntei:
— O que você escreve?
Ele sorriu, com a pausa de quem não tem pressa:
— Entre tantas coisas, banalidades.
Banalidades às quais sou fiel...
Falou de suas viagens e da prática de escrever notas.
— O diário de memórias — continuou — foi meu guia neste último livro: Entre livros e viagens.
Enquanto falava, mencionou Carolina Maria de Jesus e o impacto de Quarto de Despejo.
A voz brevemente embargada. A lágrima contida. Havia ali o reconhecimento: Carolina escrevia com a fome e a lucidez de quem observa tudo — e ele, com a delicadeza de quem escuta o mundo. Ambos, à sua maneira, revelam o que está escondido nas margens da vida.
E é dessas mesmas margens — feitas de silêncio, resistência e afeto — que nascem os verdadeiros transbordamentos criativos.
Foi ali que compreendi: talvez sejam justamente essas coisas — as que chamamos de banais — que sustentam tudo o que somos. São as delicadezas do dia comum que nos oferecem pertencimento.
Há um heroísmo manso nas insignificâncias.
Manoel de Barros dizia que é preciso “desimportar-se” para alcançar o que é fundo. Que há grandeza nas miudezas, nos gestos quase invisíveis. Talvez escrever — e viver — seja isso: dar valor ao que parece inútil, mas toca a alma. Oferecer um alimento ao andarilho, escutar o que tem a dizer...
Uma mesa posta com rendas. Um café sem urgência. O perfume que, no meio do caminho, devolve a infância.
Essas coisas não constroem o mundo — mas o sustentam por dentro.
Penso agora: um escritor é feito disso. De afetos bem guardados. De sentimentos que sobrevivem ao tempo. De cenas comuns, vividas com inteireza.
E Neumar, ali à mesa, era isso: "um apanhador de desperdícios" — presença inteira.
Palavra limpa. Emoção que não se exibe — apenas escorre, natural.
Quando se levantou, levou consigo a flor que o trouxera — invisível para nós, mas nítida para ele.
E talvez tu também caminhes com uma flor dessas —que não se vê, mas leva de volta ao que importa.
Mesmo sem o saber. Mesmo sem escrever.
Ainda assim, autor: do gesto, do silêncio, da presença.
Porque há luz — sim — nas coisas banais.
Nota: Esta escrita foi inspirada no escritor Neumar Silva, cuja escrita sensível valoriza as pequenas coisas que nos constroem pelo caminho. Seu livro Entre livros e viagens será lançado no dia 24 de maio de 2025, às 15h, na Biblioteca Casa da Horta, Quinta de Santa Clara – Cascais.
Apareça por lá!
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