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A vida é um copo cheio de tudo

Atualizado: 1 de abr.



Palavras & Azeitonas


Katia Bonfanti

psicóloga e escritora


A chuva do 08 de março parecia querer demarcar sua própria história! O céu, coberto por um manto cinza, revelou apenas breves frestas de azul, como se tentasse abrir janelas para a chegada da primavera. Mesmo com o céu fechado e o tempo nublado, não desistimos do Mercado, nem do momento do Palavras & Azeitonas.


Do meio da esplanada, aproveitando a estiada, apareceu Pedro, trazendo uma bandeja repleta de copos vazios – muitos já haviam bebido "um copo". A frase, inesperada, tomou conta do meu pensamento, como um assovio fino, vindo da própria experiência de mudança, de migração, de transição.


Imigrar, pensei, é como aprender uma nova linguagem para aquilo que já conhecemos. A mesma palavra, mas com novos significados. Lembro da primeira vez que ouvi “vamos beber um copo” – naquele momento, imaginei algo amplo, impreciso, como uma promessa feita no ar. O copo poderia ser qualquer coisa – vinho, água, ou até mesmo silêncio – que sacia algo mais profundo.

O que significa “beber um copo”? E o que é “uma mão cheia de nada”, uma expressão que ouço muitas vezes, e que, de alguma forma, surgiu no meu pensamento enquanto eu olhava para os copos na bandeja. Os líquidos haviam sido bebidos, mas a mensagem permanecia inscrita em cada um deles, sob a forma de uma fina espuma, prestes a se desfazer ...


Minha filha costuma pedir o seu suco, laranja com cenoura. Para ela, o gesto é quase instintivo – apenas dizer "um sumo" e esperar que a mágica se realize. Ao receber o suco, embora não perceba, tem uma mão cheia de tudo. O sabor não é só uma mistura de frutas; é uma conversa íntima com suas emoções e expectativas. Ela bebe com a leveza de quem ainda está descobrindo a si mesma, sem pressa de crescer, sabendo que o único compromisso de amanhã é o jogo de vôlei. Naquele copo, há uma alegria açucarada, um vigor que reflete a juventude que, como o suco, flui sem reservas. Um gozo espontâneo que transita entre o prazer imediato e a promessa do futuro – como um delicado rito de passagem que começa com o sabor e segue pelas sensações a incrementar as memórias daquele momento. Satisfação e prazer que pareciam emergir da relação com o líquido do copo.


Em contraste, outra bandeja de copos vazios. O dia cinzento parecia chamar mais atenção para aqueles pequenos rituais, como se o próprio ato de consumir se tornasse uma forma de nutrir algo mais profundo: uma necessidade de cor, de vitalidade, de repouso. Talvez o clima tivesse amplificado a busca por calor, ou talvez fosse a psique humana, que encontra consolo na doçura e no frescor, mesmo nos momentos mais opacos. Pedro, atento, comentou que os pedidos de suco estavam em alta – e de fato, a entrega de mais uma caixa de laranjas só fazia confirmar a tendência.


Gosto de pensar nas emoções que orbitam nossos contatos com as coisas e o mundo: as sensações, as memórias e as emoções que os alimentos carregam. Gosto dessa viagem sensorial, especialmente quando envolve sabores recém-colhidos da terra. Quanta informação nos chega às veias a partir deles! Quanto podemos conhecer de nós e de nossa ancestralidade ao observarmos nossas escolhas gastronômicas. Somos agentes históricos, percorrendo trilhas de sabores e texturas e, quando nos damos conta, estamos revisitando nossas experiências.


Eu aprecio mercados de hortifrúti. Essa ligação com o que é fruto de colheita familiar está entranhada em minhas memórias. Lembro-me de todos os estágios da flor do morango e do sabor ácido-adocicado da fruta, mas, mais do que isso, é a alegria de encontrar as frutas maduras sob as folhas, ao lado do meu irmão, que me faz sempre voltar ao sabor. Nossos pequenos tesouros. Nossa felicidade clandestina. Assim, eu poderia falar de cada fruta que escolho.


Então, aqueles copos todos foram escolhidos por razões que a própria razão desconhece. O que leva alguém a optar por determinado sabor? Seria apenas um desejo momentâneo ou algo mais profundo? Fiquei imaginando todas aquelas variações de sucos e os possíveis aportes afetivos e emocionais que o sabor trouxe a quem o escolheu.


A expressão "beber um copo" é cheia de significado, e o copo, na verdade, é apenas simbólico – o que importa, de fato, é o líquido. O copo contém, mas também limita. Ele é um recipiente de vontades, uma borda entre o querer e o ter. E, naquela viagem pelas minhas ideias, me deparei com Bauman e sua teoria da modernidade líquida. Ele fala da fluidez das relações, da impermanência dos laços. Assim como o líquido se adapta ao recipiente, também nós tentamos nos moldar às circunstâncias.


Enquanto desenrolava esses pensamentos, chegavam mais pedidos de suco. Um jovem, que parecia ter chegado de uma corrida, pediu suco de cenoura, laranja e gengibre – talvez buscando energia e frescor. A outra pessoa que veio com ele pediu suco de maçã verde – um sabor ácido e leve, quem sabe desejando algo revigorante, mas sutil. Era copo, era líquido, mas, na verdade, era muito mais do que um copo cheio de suco. Era o que cada um precisava para se recompor ou compor seu estado “líquido” subjacente.


Aquele que somos em nossa essência. Nossos internos, emocionais, liquefeitos, medos constantes, sonhos... Somos, ao mesmo tempo, navegadores e náufragos, tentando encontrar um equilíbrio entre a necessidade de estabilidade e a inevitável impermanência das coisas. Entre goles e escolhas, somos todos líquidos, tentando conter nossas incertezas em copos frágeis. Navegamos entre o que queremos ser e o que somos, ora correntezas, ora portos, sempre tentando encontrar onde repousar, sendo fluxo.


Bauman nos provoca: como sustentar um propósito em um mundo onde tudo se desfaz antes mesmo de se firmar? Como ancorar o sentido em algo que, por natureza, não se fixa? Talvez a resposta não esteja em resistir à fluidez, mas em aprender a dançar com ela. Em fazer do efêmero um aliado, em valorizar o instante não apesar de sua transitoriedade, mas justamente por causa dela. Criar laços que, ainda que líquidos, tenham a densidade daquilo que importa.


Nada melhor do que um copo de sumo, espesso e vibrante, para desacelerar a urgência que nos atropela. O suco, com sua doçura líquida, escorre pela garganta e impõe um breve silêncio ao tempo. É um intervalo, um respiro no meio do caos, uma proteção em dias sombrios.

Seu sabor terreno reconfortante é um atalho para memórias, uma soma calórica que chega ao espírito. Talvez seja essa doçura imediata, pronta para ser sorvida sem esforço, que remonte às nossas primeiras experiências de conforto: o leite materno, o primeiro contato com o sabor, o primeiro aprendizado de que o mundo pode, sim, ser adocicado, emborao ácido ressalte...


A chuva retornou, fina e persistente. Mas, no entremeio dessa cortina úmida, as mãos se erguiam cheias de tudo: copos repletos de sensações, transbordando momentos, cheios de sabores – pequenos refúgios que o dia exigia. Cada copo, um reflexo de uma necessidade invisível, um prazer, um afeto a ser encontrado, um ato de cuidar de si. Beber um sumo numa manhã chuvosa é se reconectar com o que há de mais simples e genuíno em nós. É um instante de plenitude disfarçada de cotidiano. Um gosto onde conectar-se aos sabores torna-se um copo cheio de memórias e essências!


Arquivo pessoal - imagem feita no Mercado da Vila
Arquivo pessoal - imagem feita no Mercado da Vila
Imagem: Salgados do Fundão
Imagem: Salgados do Fundão

2 Comments


luizctaraujo
luizctaraujo
Mar 12

Grande escritora, tua observação é aguda sobre tudo que te rodeia. Há a consciência do momento porque no jardim não há só flores, mas a natureza, o ambiente humano, os objetos inflam o balão da tua criatividade que alça voo. Aí vêm as memórias, a análise e as projeções. Fico com a certeza que nunca vais conhecer a solidão porque te consideras dentro do todo e, como tal, tudo fica à mão para ser interpretado por diversos ângulos; daí, então, crias novas situações. Abraço.

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Olha só ! .. de um limão, fizeste uma limonada.. ou melhor.. de um copo fizeste uma resenha do cotidiano do dia à dia e da convivência com as pessoas e seus prazeres e gostos distintos... Muito bom.. parabéns Kátia... Abraço

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